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Na capela de Santa Martinha venera-se uma imagem do Senhor dos Passos, cuja história muitos Santamartenses não conhecem.

Na casa da família "SALES", contígua à capela, existe uma pedra antiga com a data de 1637 e que  se  diz ter sido de uma antiga casa térrea, construída naquele mesmo local  pelo «ti Pandilha» ou «ti Calisto» apelido ou alcunha por que era conhecido.

Se aquela pedra não foi trazida de outro sítio para ali, fica-se a saber que a primitiva casa data desse ano e, portanto, que em 1637 Santa Martinha era já um lugar povoado.

Aquela primeira casa dos Calistos foi pois construída ainda na Dinastia Filipina, naquele ano em que o povo português, cansado do domínio estrangeiro, se revoltou em Évora. 

Esta fracassada revolta, sufocada e afogada em sangue pelas forças espanholas, foi a primeira tentativa séria dos portugueses para libertar a nação e restaurar a independência  o que haveria de acontecer dali a três (3) anos - 1640.

Naquela casa foram-se sucedendo as gerações da família «Calisto» até que, por alturas de 1800 um descendente desta família foi para Lisboa trabalhar numa padaria.

Parece que, nas horas vagas ele ia para oficina de um «armador» e aí aprendeu essa arte (principalmente a de fazer caixões) arte que depois exerceria nesta terra e aqui ganharia raízes.

Quando em 1807 as tropas Francesas invadiram, Portugal, violando, matando, profanando, roubando e devastando tudo o que podiam e se apoderaram de Lisboa, a população ficou tomada de pânico e procurou esconder da cobiça ou irreverência daquelas tropas tudo o que tinha real valor ou era objecto de muita estima e grande veneração. 

Havia então, na Igreja do Alto da Graça, uma imagem do Senhor dos Passos muito venerada pelo povo.

Aquele senhor «Calisto», que trabalhava perto daquela Igreja e já ganhara gosto pela arte de armador, receou que os Franceses profanassem também aquela Igreja e desrespeitassem as sagradas imagens.

Pensou então em salvar a imagem a imagem do Senhor dos Passos.

E decidiu-se. Foi à Igreja, desarmou a imagem, desarticulou as peças, juntou-as todas, atou-as, embrulhou-as e foi esconder, tudo debaixo da «garavalha», que guardava a vez de ser queimada no forno da padaria.

Algum tempo depois decidiu vir-se embora e trazer consigo aquela sagrada imagem.

Podemos imaginar quanto isto lhe custaria, pois, naquele tempo ainda não havia comboios nem

estradas de macadame.

Fosse como fosse, ela cá chegou.

Uma vez aqui, construiu-se uma capela  que não era mais uma tosca barraca de madeira.

Só bastante mais tarde seria construída a pequena mas linda capelinha que hoje existe.

Ao lado dela se construiu a bela vivenda pelo Sr. António Sales Gomes

Em certa altura, o Sr. Francisco Sales (assim chamado por ter nascido no dia de São Francisco de Sales), casou com uma descendente dos Calistos e veio morar para esta casa que se tornou um viveiro de armadores, pois daqui saíram para «outra banda» e para Riba de Âncora os armadores que formam as «dinastias» dos «Calistos» dos «Cunhas» e dos «Sales».

Quando a capela era ainda, uma simples barraca, já se fazia todos os anos a festa do Senhor dos Passos. 

Esta festa era celebrada no mês de Agosto e mais tarde passou a  celebrar-se então no Domingo de Pascoela com a particularidade desconcertante de, durante ela, se queimarem muitos foguetes e de se fazer rebentar muitos morteiros, dos quais restam ainda alguns exemplares, guardados na casa  Sales.

O Domingo de Pascoela não era certamente o dia mais apropriado para a celebração daquela festa

Foi o saudoso Sr. Reitor da Breia que resolveu que esta festa do Senhor dos Passos se realizasse no Domingo de Ramos, como ainda agora se faz.

É a casa «Sales» (hoje Passos Sales) à qual pertence a Capela, que vem promovendo todos os anos esta festa.

O falecido Sr. António Sales  legou um campo a esta capela para a veneração da mesma e para a ajuda da festa.

Até hoje a festa ainda não deixou de se fazer e a capelinha está muito bem conservada e bem arranjada.

Se esta sagrada imagem era muito venerada na grande igreja do Alto da Graça, também o é nesta capelinha.

Que o Senhor dos Passos abençoe sempre a família e os seus devotos.

 

Betânia do Lima

 

 

 

 

 

 

                                                          Viana de Algum Dia

                       A Cabeça do Senhor dos Passos

                                                                                                                                                                      Por José Rosa Araújo

 

De dentro da padaria através duma janela mal cerrada,Calixto assistiu a toda a tragédia,confrangendo-se de dor. O Senhor dos Passos, o seu rico Senhor dos Passos! Viu a cabeça rolar,até que parou molemente no meio da lama e da água dum charco, junto da casa donde espiava…

E vendo a horda retirar para repetir noutro sítio, iguais façanhas entre o povo que ordeiramente a recebia, não se conteve.

Nunca pode, nem soube explicar as causas que o moveram.

Foi como que obedecendo a um impulso interior, forte como um empurrão.

Veio à rua, deu um relance pela vizinhança e, com uma toalha de tapar o pão, apanhou a cabeça e refugiou-se outra vez na padaria.

Escondeu o despojo no meio do montão da gravalha e só então pensou a sério nas consequências do seu gesto. Se alguém o tiveste visto e o denunciasse? Teve uma agonia mortal. Porém, o largo estava vazio, e bem vazio… Só lá jaziam escombros, farrapos, - e a desolação que deixa sempre uma horda no seu rasto. Ninguém o vira, pelo menos ninguém o incomodou.

Nem o nosso rapaz a ninguém disse o seu feito.

Sem dar qualquer rumor, levou a cabeça para o desvão onde dormia e ali a meteu carinhosamente na saca da sua roupa.

De longe a longe, quando seguro de que todos estavam recolhidos e com receio do próprio gato que lhe ronronava às pernas, tirava o sagrado despojo e regava-o com as suas lágrimas. Que mais era susceptível de fazer o nosso rapaz?

E, inexplicavelmente, o milagre, o grande milagre, tantas vezes solicitado, teve a sua efectivação. Quando passado o tempo tormentoso e o Junot se viu obrigado a abandonar Portugal, chegaram-lhe agradáveis notícias  da terra. Os pais mandaram-lhe dizer que uma pequena herança lhes caíra dos céus aos trambolhões. A má sorte parecia passada e rogavam ao filho que fosse alegrar-lhes a velhice agora que, ao fim, de tantos anos de desgraça, a ventura parecia sorrir-lhes… E como a alentá-lo, mandavam-lhe o recado de que a cachopa dos olhos negros recusava todos os casamentos que os parentes lhe armavam e uma ou outra vez perguntava se ele estava de saúde…

Ora o Calixto suspirava pela terra, pela rapariga, pelos amigos… apesar de todas as delícias da Capital, a sua Santa Marta nunca lhe varria dos olhos.

É naquele dia, com a carta agarrada ao peito,mais uma vez se lembrou da sua aldeia da sua casa alegre e pobresinha, dos bolos que a mãe preparava nos dias de fornada grande, nos caminhos e terras de semeadura à beira rio, no adro solheiro aonde, ao domingo depois da missa, toda a gente da aldeia passarita e conversa deitando bons olhos às môças que passam com roupas de ver a Deus e muito ouro sôbre o peito…

Decide, não decide – havia de voltar tão pobre como de lá partira? –deixou passar a guerra e, tendo juntado uns pintos, a nostalgia pesou mais que o orgulho.

Abalou… e todo o caminho lhe pareceu bastante longo. Bem podemos supor que palmilhou léguas e léguas de dia e de noite, insensível ao cansaço, à fome e á sede. Saca ao ombro enfiada num cajado, pés descalços, prometeu uma novena se chegasse à terra são e escorreito. Rezava pelo caminho…

Bem se pode supor que, sobre ele pairou a graça de um génio tutelar.

Excitado pelo jugo das invasões, pelo redemolinho das ideias novas e do inevitável entrechoque com as antigas tradições, todo o país estava em armas.

Muitos olhos carregados de ódio seguiram os seus passos, pretendendo ver no caminheiro ou espião ou jacobino disfarçado.

Aqui e além era interrogado por homens de vozeirão tremendo e que empunhavam trabucos.

Pelos palheiros, pelas hospedarias, onde de longe em longe, a fadiga o levava a pernoitar, muitas vezes sentiu rondar-lhe o catre a asa gelada do arcanjo negro…

Mas seguiu, seguiu sempre, com o saquitel precioso e, quando do alto do Monte da Ola, num desvio do caminho velho, se desenrolou a paisagem limiana e as casas de Santa Marta brilhando ao sol  como pombas brancas no telhado dum pombal, ajoelhou e chorou de júbilo como Moisés diante da Terra da Promissão.

Chegou, enfim…

A caminhada (digna dum homem)  e o mau passado tornaram no tão magro que um fio de azeite o passava todo.

Mas era vê-lo um mês depois, -- novamente forte, arganaz, -- novamente pronto a cavar de sol a sol como um jornaleiro.

 -- Não há nada como os ares da terra, -- dizia.

E no meio da sua alegria, não esqueceu a << promessa>>.

Conseguiu, com um dos santeiros do Amonde, a caboucar-lhe umas mãos e uns pés de madeira; à custa de não pequenas ecónomias, comprou uma véstia rôxa e, aprontada a imagem, votou-se a edificar-lhe no quintal um oratório de tabuado que, depois de pronto, caleou e voltou a calear.

 <<Ainda estava longe do que queria fazer>>, pensava.

A quem lhe perguntava a causa do seu afã, relatava a história, sem, no entanto, aludir à interferência milagrosa na sua vida privada.

E todos os dias, com uma pontinha de sol a aquecer-lhe a alma, monologava com mêdo:

Se o Senhor dos Passos quizesse, se o Senhor dos Passos quizesse.. e o resto nem a si mesmo o expressava.

Ora,por esses tempos, morreu o Calixto um parente afastado e, como é de uso nas nossas aldeias, todos os que fazem parte da família, assistem às cerimónias do funeral, envoltos num varino ou capotão (seu ou emprestado para o efeito) ninguém arreda pé da casa mortuária, até que o cadáver vá para o cemit+erio onde o deixam, não sem gritaria capaz de comover as pedras.

Um <<mortório>> era então e ainda há bem recentes tempos, coisa para empenhar uma casa, só com os ágapes que era de tradição oferecer.

Mas na época que nos interessa, não eram caros, porque eram carissímos,-- especialmente para as famílias que desejavam que os seus mortos empreendessem a derradeira viagem comodamente deitados num caixão próprio.

A conta apresentada pelos armadores de Viana, os Pintapás, únicos senhores do ofício no concelho, era de enforcar vinte labregos. Para a pagar, era muitas vezes necessário recorrer à venda de uma bouça ou de um paúl ou de uma boa courela…

Constituía um luxo – e como tal, houve muita gente que chegou a arruinar-se para levar decentemente os seus mortos à última morada.

Os defuntos necessitados eram embrulhados num lençol, seguindo num esquife comum que pertencia à Igreja, até à cova, por meio de duas tiras de linho, chamadas Soqueijas, misericordiamente choleadas por um alfaiate de apelilo Vinagre.

Calixto assistiu a toda esta função, com o espanto natural de um forasteiro. A cena, habitual da sua infância, esquecera-a nos longos anos de ausência…

De modo que no seu cérebro gerou-se logo um progecto audaz.

 -- Oh Zé Vinagre, e se… ?

 -- Mas tu… ?

E ficou assente.

Quando morreu outro pobre, o nosso Calixto apresentou-se à família e declarou-lhe:

 -- Se voçês quizerem, eu me encarrego do caixão. Tragam-me só quatro tábuas de pinho, tantos covados de pano preto e duas manadas de pregos… Pelo meu trabalho não levo nada; mas se ficarem satisfeitos co o serviço, darão uma esmola para o meu Senhor dos Passos…

Aquele enterro fez éco por léguas ao redor, a que não era estranha a forma singular do ataúde.

Tanto que Calixto não teve mais mãos a medir … De todas as bandas lhe vinham pedidos e mais pedidos.

O nosso homem juntou no ofício tradicional da sua gente o de cangalheiro. E prosperou nele … E levantou logo a ermida, de pedra e cal ao Senhor dos Passos… e um dia, pela Pascoela …-- tinha de ser – casou com a rapariga dos olhos negros.

Para comemorar esta coroação de todos os esforços, obrigou-se a festejar anualmente o seu santo protector.

Na exaltação da sua alegria, a toda a gente contava a sua felicidade;

 -- Que era só ao Senhor dos Passos que a devia, proclamava aos quatro ventos.

A sua fé impressionou pela sinceridade…

E dias passados, aí chegava um lavrador com um ex-voto de cêra para cumprimento duma promessa.

A Santa Imagem criara devotos! Já estava lançada no nosso meio!

E pronto.

Calixto, para homenagear os amigos no dia da festa, como festeiro mór, dava um banquete no dia consagrado.

Comprou enormes tachos de cobre para os cozinhados e encomendou à fábrica de Darque um serviço inteiro de louça.

Lá tudo raso, nessa ocasião.

Musica, foguetes, sermão e um rôr de gente…

O homem morreu muito velho, deixando não só uma casa próspera, mas um ofício em que muitos dos seus descendentes ganham ainda hoje honestamente a sua vida.

 -- O Sr. Reguengo conhece muito bem essa história, finalizei.

 -- Oh meu amigo, porque esse Calixto, cujo nome completo era Calixto António Cunha, era nem mais nem menos que meu bisavô.

 

Fevereiro de 1943

 

 

- NOTA -

Em 1906, a procissão do encontro passou do domingo de Pascoela para o domingo de Ramos, já que é o 2º domingo da Paixão, do Senhor dos Passos, fazendo todo o sentido. Essa decisão foi tomada por uma iniciativa do Sr. Reitor da Breia e com o acordo da freguesia.

Procissão do Senhos dos Passos,

a caminho da Igreja Paroquial,

após sermão de encontro.

5 de abril de 1914

Domingo de Ramos

Imagem retirada da página do Facebook

do lugar de Santa Martinha

 

 

Em 2017 o padre da freguesia (que se dava a conhecer por Valdemiro) com o acordo da viúva do Sr. Passos Sales, herdeiro da capela, acabaram com a procissão do encontro não respeitando o compromisso assumido por ela e o marido com a família Sales (proprietária da capela), em manter a tradição (como acima se descreve no livro da cabeça do Sr. dos Passos de José Rosa Araújo) com a procissão do encontro no domingo de ramos da parte da manhã.

 

Assim, acabou uma tradição secular em Santa Marta de Portuzelo.

 

Abril 2018

 

 

Em 2019 após a substituição do pároco da freguesia em setembro de 2018 pelo padre Christopher Sousa um descendente da família Sales de nome Álvaro questionou o referido padre sobre o futuro da procissão de encontro se retomava a tradição secular ou se mantinha a nova versão. A resposta foi de manter o mesmo costume como encontrou e nada alterar apagando assim uma tradição de 110 anos em Santa Marta de Portuzelo. Enfim!!!

Aqui fica o registo dos coveiros desta procissão e tradição secular de Santa Marta de Portuzelo.

 

Fevereiro 2019

 

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